Texto 14/09/23
A GRANDE VIRADA DOS BUSCADORES DA LUZ
Raul Branco
O sentimento que o despertar espiritual evoca na maior parte das pessoas é semelhante ao de recém-casados em lua de mel. O coração bate mais forte, tudo é visto com olhos amorosos e os mínimos detalhes no “bem-amado” parecem obras de arte da natureza. Mas os dias e os meses vão passando e a imagem primaveril vai cedendo lugar a um verão que pode se tornar bem abafado.
O buscador espiritual que “sentiu o chamado” fica maravilhado com a riqueza da literatura existente sobre a Senda. Livros e mais livros são lidos, sublinhados e comentados com outros colegas de busca. Cursos e seminários são frequentados, práticas meditativas são aprendidas e experimentadas, e orientadores espirituais são buscados. O neófito, com grande júbilo, sente que está fazendo progresso.
Passam-se os anos e, finalmente, o postulante se dá conta de que acumulou muita informação em sua mente, fez progresso em algumas práticas, conseguiu superar alguns empecilhos para o Caminho, mas, que o grande objetivo, a mudança interior, não está progredindo no mesmo ritmo que seu conhecimento da literatura.
Depois de mais alguns anos, alguns acabam perdendo o entusiasmo pela “busca”, “pela grande jornada da alma”, “pelo caminho do fio da navalha” e outros títulos de impacto. Qual a razão para isso? Será que o poderoso chamado interior e a sincera dedicação à Senda não são suficientes para garantir o progresso do neófito?
Sabemos que o chamado interior e uma aspiração ardente são requisitos necessários, mas não suficientes. É preciso também discernimento e MUITA determinação para fazer a coisa certa, para superar os bloqueios que tendem a dificultar o tão ansiado progresso do buscador. Sem um conhecimento mínimo de psicologia prática o buscador acaba dedicando muito tempo e energia a questões alheias aos bloqueios que dificultam e até mesmo impedem seu progresso.
E quais são esses bloqueios? Uma palavra é suficiente para identificá-los. Seu nome é MUDANÇA. Nosso pequenino (mas extremamente poderoso) ego consegue direcionar nossa atenção para longe do que realmente importa na senda de retorno à Casa do Pai: a mudança interior. Sabemos que o segredo do progresso na senda está em nosso interior, pois nossas ações são determinadas por nossos pensamentos e sentimentos que, por sua vez, geralmente já foram decididos de antemão. Parece estranho que grande parte de nossas escolhas já foram “feitas” antes mesmo de serem consideradas.
A razão para isso é que uma parte considerável de nosso comportamento é predeterminada por nossos condicionamentos. Os condicionamentos são mecanismos extremamente sofisticados que permitem ao cérebro dispender muito pouca energia para decidir o que fazer em inúmeras atividades de nossa vida diária. Muitos condicionamentos nos acompanham desde tenra infância. Foram iniciados com os ensinamentos de nossos pais e outros educadores. Eles estabelecem nossas crenças, que, por sua vez, determinam nosso comportamento nessas situações. Muitas crenças, preferências e até mesmo fobias foram estabelecidas por meio desse processo. Os psicólogos sabem como é difícil ajudar seus pacientes a mudar certos comportamentos e fobias prejudiciais, porque os pacientes podem não estar cientes de como seus hábitos foram criados e, com isso, criam barreiras para impedir a identificação da fonte de seus traumas.
A identificação desse problema foi feita há mais de dois milênios por nosso Mestre, ao finalizar seu portentoso Sermão da Montanha, indicando o que precisamos fazer para alcançar nossa meta do Reino dos Céus: “Todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será comparado a um homem sensato que construiu a sua casa sobre a rocha. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado a um homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela caiu. E foi grande a sua ruína!” (Mt 7,24-27)
Até mesmo devotos sinceros podem estar inconscientes de que não estão seguindo os ensinamentos do Mestre, em virtude do forte condicionamento de sua natureza inferior, governada pelo pequenino ego, agindo assim de forma inconsequente, quando não egoísta, em alguns aspectos de sua vida.
A “grande virada” dos buscadores da luz demanda que consigamos desfazer o insidioso mecanismo que limita nosso progresso na Senda, ou seja, a ilusão de sermos seres separados, muitas vezes referida como a ilusão da separatividade. Todos nós fomos condicionados a acreditar, desde nossa mais tenra infância, que somos nosso corpo, ou nossa personalidade, e que temos uma alma imortal. O corolário natural dessa crença é que temos a firme convicção de que somos separados de todas as outras pessoas, o que é verdadeiro para o nosso corpo, mas não para nosso verdadeiro ser, nossa alma.
No entanto, o objetivo da vida espiritual é alcançarmos a experiência, a vivência interior, da unidade de todos os seres. Com essa realização estaremos capacitados a dar o último “passo” da jornada da alma, o conhecimento, a “gnose”, de que somos todos expressões do Pai/Mãe celestial, a Fonte de toda manifestação, que chamamos de Deus. Essa experiência é obtida no Samadhi dos iogues avançados, no êxtase dos místicos dedicados e até mesmo nas muitas experiências de quase morte (EQMs). Esses expoentes da família humana passam a SABER, de forma vivencial inquestionável, aquilo que muitos praticantes repetem automaticamente todos os dias em suas práticas espirituais: “eu e o Pai somos Um” e “eu sou uno com todos os seres”.
O conhecimento vivencial da verdade de que nós NÃO temos uma alma, mas sim, que nós SOMOS a alma imortal e que temos um veículo, nosso corpo físico impermanente, é o ponto de partida para a grande virada. Essa virada tem a ver com a operação da Lei do Karma, mais conhecida nos países ocidentais como a lei de causa e efeito. Essa lei é apresentada em várias passagens da Bíblia, sendo que uma das mais práticas é conhecida como a REGRA DE OURO, apresentada no Sermão da Montanha: “Tudo aquilo, portanto, que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles, pois esta é a Lei (de causa e efeito) e os (ensinamentos dos) Profetas” (Mt 7,12).
A grande virada demanda uma atitude sábia com relação à operação da lei de causa e efeito, como apresentada de forma explícita pelo apóstolo Paulo aos Gálatas: “Não vos iludais; de Deus não se zomba. O que o homem semear, isso colherá” (Ga 6,7). Estamos nos aproximando agora do objetivo desse ensaio, ou seja, da operação da lei de causa e efeito, com o que poderíamos chamar de “instrumentos do karma”. Teremos com isso os elementos para entender a razão por que achamos nosso progresso na senda tão lento.
Os instrumentos do karma são todas as pessoas que compartilham conosco da “escola da vida”. São nossos parentes, companheiros de vida (amores e consortes), amigos, colegas de trabalho, pessoas que encontramos nas lojas, na rua e em todos os lugares. São essas pessoas que a Providência Divina encarrega de nos entregar a “colheita” de nossas ações passadas. Seguidamente temos a impressão de que muitas pessoas são injustas conosco e, por essa razão, geralmente revidamos ao tratamento que julgamos injusto.
Vale lembrar os ensinamentos milenares do Mestre, especialmente aqueles relacionados ao comportamento dos outros para conosco, quando julgamos que estamos sendo injustiçados. Muitos consideram a orientação de Jesus de não resistirmos ao homem mau, não revidarmos àquele que nos fere na face direita e outras imposições ou agressões, nas passagens do Sermão da Montanha em Mt 5, 38-42, como aplicáveis somente para os discípulos avançados do Mestre e pessoas santas. Ledo engano. Esses são ensinamentos oferecidos para nos tornarmos discípulos avançados e pessoas santas.
Para darmos o grande salto em consciência, que nos proporcionará a Grande Virada, precisamos unir os ensinamentos sobre a unidade de todos os seres, com o fato de que somos uma alma, que usa diferentes corpos ao longo de séculos e milênios. Portanto, nossa colheita dos frutos que plantamos no passado, nesta encarnação, ou em qualquer uma das muitas anteriores, será proporcionada por agentes do karma, que são todas as pessoas com quem interagimos em nossa vida diária. Portanto, precisamos dar muita atenção para as pessoas mais próximas, como nosso consorte, pais, filhos, irmãos, primos, amigos, colegas de trabalho, atendentes no comércio e mesmo todas as pessoas com quem nos encontramos e interagimos em nossa vida diária, pois TODOS são instrumentos do karma, que, como nós, também não estão cientes de estar cumprindo essa missão.
Vamos imaginar que você é insultado por um amigo, ou leva uma bronca de seu pai, ou de seu consorte. Mesmo que você esteja seguro de que não mereceu esse tratamento, dessa pessoa tão próxima, lembre-se de que ele/ela é meramente um instrumento do karma. Pare, respire fundo, conte até dez e NÃO dê o troco, não responda nos termos que você acha que ele/ela merece. Lembre-se de que TODOS NÓS somos instrumentos do karma, uns dos outros. Portanto, se você recebeu um tratamento desagradável ou mesmo agressivo de uma pessoa próxima, não revide, porque com isso você estará criando as condições para receber esse mesmo tratamento mais tarde, outra vez e outra vez.
A grande virada é simplesmente isso: aprender a não revidar quando recebemos um tratamento agressivo e desagradável que julgamos injusto, para não ativarmos outra vez a roda do sofrimento. É por essa razão que os sábios nos ensinam a sermos sempre gentis e prestativos, pois gentileza atrai gentileza, assim como agressividade atrai agressividade. A maior parte das pessoas estarão pensando mil e um argumentos para contestar essa sugestão de não revidar. Isso não significa que devemos nos tornar “sacos de pancada”, pessoas medrosas e “sem caráter”. Muito pelo contrário. É preciso muita coragem, determinação, sabedoria e autocontrole para seguir a orientação de Jesus no Sermão da Montanha: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra”.
O conceito de “manso” usado por Jesus deve ser entendido num sentido espiritual. O Mestre sabia que o ódio, a cólera, a violência, a mágoa e o rancor podem ser conquistados pela doçura e pelo amor. A força do “manso” está em sua atitude mental de controle da agressividade. Por isso ele oferece a outra face quando agredido, ou seja, oferece outra alternativa de abordagem, não REAGE de forma gutural instintiva e agressiva, mas AGE de forma consciente, sábia e desapegada. Por isso é dito que ele herdará a terra. Sendo totalmente inofensivo, sábio e compassivo, não será um opressor quando alcançar o poder. Ele herdará (como um Iniciado elevado) o domínio sobre as leis e as condições do mundo exterior, sobre toda a manifestação divina, inclusive de sua própria natureza, pois ele é confiável no uso do poder.
Um dos principais ensinamentos budistas e hinduístas, como requisito para progredir na senda espiritual, é a qualidade de ahimsa, ou seja, da inofensividade. Mas, se você acha que precisa estar preparado para se defender fisicamente em certas ocasiões, procure então aprender a arte marcial de Aikido. Se você acredita que precisa interagir com as pessoas em nosso mundo competitivo e, muitas vezes, agressivo, você encontrará um método construtivo e eficaz, que não lhe fará incorrer em karma negativo, estudando e colocando em prática a obra de Marshall Rosenberg: Comunicação Não Violenta.
Em resumo, a inofensividade da mansuetude é o segredo da grande virada para o progresso na Senda espiritual, pois nos permite escapar do lodaçal em que nos atolamos, por inúmeras encarnações, repetindo e repetindo a lição da não violência, até aprendermos a ser mansos e amorosos como Jesus nos ensinou em seu épico Sermão da Montanha. Portanto, quando se sentir injustiçado por alguém, pare, respire fundo, não revide e, internamente, agradeça à Providência Divina por enviar esse instrumento do karma para quitar mais um débito de sua conta kármica com a humanidade.
Essa lição é muito importante, pois é dito que para alcançar a Grande Iniciação, que nos tornará um Mestre de Compaixão e Sabedoria, precisamos quitar inteiramente nosso karma com a humanidade. Esse é o motivo pelo qual verificamos uma aparente incoerência, ou seja, o fato de que pessoas amorosas e mesmo santas, totalmente dedicadas ao bem da humanidade, como São Francisco, Tereza de Ávila, Chico Xavier, Blavatsky e tantos outros, tiveram uma vida tão atribulada e cheia de sofrimento. Portanto, não peça para ser livre da sua provação, mas sim para ter luz e força para resistir à tentação de revidar à agressão e assim permanecer no círculo vicioso da ignorância que leva ao sofrimento. Aproveite para se determinar a ser gentil e paciente com todas as pessoas ao seu redor. E, para consolidar a Grande Virada, seguindo o exemplo do Mestre, diga silenciosamente, de coração: “perdoai-o Senhor, ele não sabe o que faz”.
Aquele que consegue realizar a Grande Virada e passa a entender os mecanismos do karma, geralmente se determina a aproveitar essa mudança de vida para acelerar seu progresso na Senda. Ele sabe agora, em seu coração, que não basta deixar de revidar. O próximo passo é tornar-se um instrumento do karma positivo, trazendo luz, paz, amor, harmonia e alegria para a vida das pessoas ao seu redor. Essa atitude e determinação vai despertar em sua mente e seu coração o que é chamado de “Dharma” nas tradições orientais, ou seja, sua missão de vida. Para cada temperamento (dos sete referidos na tradição esotérica) existe uma tendência natural para atuação no mundo.
Essas duas etapas da Grande Virada refletem a essência do ensinamento do Senhor Buda. Quando foi solicitado a resumir seus muitos ensinamentos, o grande instrutor disse: “Cessai de fazer o mal; aprendei a fazer o bem”. Todo mal deve ser terminantemente abolido da vida do praticante. Mas fazer o bem deve ser aprendido, pois só os sábios estão capacitados para identificar o que as pessoas realmente precisam, em cada situação, para progredir na Escola da Vida.
Namastê.
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